
Autoginefilia, identificada por um autoginefílico
Quando um homem sabe que não é mulher
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Esse texto levou 1h pra ser traduzido. Me ajude a continuar trabalhando!
Comentário da tradutora: Essa é a tradução do texto “17 signs I am an Autogynephile and didn’t know it”, de Miranda Yardley.
Miranda Yardley é um homem. Ele afirma ser um homem; ele não diz ser mulher. Ele usa roupas consideradas “femininas” e se apresenta à sociedade de forma considerada “feminina”, além de ter adotado o nome de Miranda. Só que não exige ser tratado por “ela”, nem reivindica — nem acredita — ser mulher. Miranda apóia aberta e publicamente o feminismo radical, e, por isso, já inclusive sofreu agressões físicas por parte de — adivinha! — transativistas. Este é um texto de Miranda comentando alguns pontos de um outro texto, escrito por uma pessoa do sexo masculino que se reivindica mulher, texto que, como o nome diz, traz os “motivos” ou “sinais” por meio dos quais sua transexualidade ficou “evidente”.
Natalie Egan, que escreve em blogs e recentemente começou a escrever para o Trans.Cafe, publicou o seguinte artigo em 27 de junho de 2016: “17 sinais de que eu era transgênero mas não sabia”.
Pensei em apontar algumas das coisas nesse artigo e mostrar como e por que esse artigo apoiaria a tipologia de autoginefilia de Blanchard. Eu não estou “diagnosticando” a pessoa que escreveu, estou fazendo algumas observações que mostram de que forma esse artigo sincero apoia a ideia de que a autoginefilia é a motivação por trás daqueles indivíduos do sexo masculino que transicionam e que são predominantemente heterossexuais.
Em primeiro lugar, a pessoa que postou é do sexo masculino, teve crianças e parece ter tido (e possivelmente ainda estar) em um relacionamento amoroso duradouro com uma mulher. Por se tratar de um indivíduo transgênero do sexo masculino predominantemente heterossexual, a tipologia de Blanchard sugeriria que sua transição tem raízes na autoginefilia, ou seja, que se trata de um “transexual autoginefílico”.
Para deixar claro, eu não considero transexuais não-autoginefílicos como “mais reais” ou “melhores” do que transexuais ginefílicos.
Autoginefilia é algo extremamente mal-compreendido dentro da comunidade transgênero. É vista como sendo sinônimo de cross-dressing fetichista, que tem uma finalidade puramente erótica; mas a realidade é muito mais cheia de nuances. Existem quatro tipos de autoginefilia, nenhum dos quais mutuamente excludentes e que frequentemente co-existem em grupos de dois ou três, ou, como veremos, alguns sujeitos podem dar exemplos de todos os quatro tipos de comportamento autoginefílico.
A forma como a autoginefilia pode levar à transição já foi lindamente descrita por Ann Lawrence em seu ensaio “Becoming What We Love” [Tornando-se O Que Amamos]. Eu recomendaria todo seu trabalho, uma vez que é perspicaz, cheio de compaixão, e firmemente fundamentado na realidade, assim como seu livro “Men Trapped in Men’s Bodies” [Homens Presos em Corpos de Homens].
De qualquer forma, sigamos com a análise.
2. EU CONSIDERAVA A PLAYBOY UMA REVISTA GENUINAMENTE INTERESSANTE (MESMO QUANDO CRIANCINHA)
Qualquer pessoa que me conheceu quando eu estava crescendo sabia que eu era fascinado por mulheres. Eu fui o primeiro dos meus amigos a pensar que a Playboy era uma revista obrigatória de se ter; eu até me lembro de implorar para que minha mãe comprasse pra mim uma cópia no meu aniversário de 10 anos! Eu também secretamente queria ler revistas como Vogue, Cosmopolitan, e quaisquer catálogos de compras de mulheres que viessem junto. Quando criança, eu tinha relativamente pouca vergonha dessas coisas, mas minha obsessão com olhar para mulheres me fez sentir envergonhado conforme eu crescia.
Por quê? Porque meu interesse não era só erótico. Eu nunca fui capaz de explicar até recentemente haver a confusão na minha cabeça entre me sentir atraído por uma linda mulher, e de fato querer ser uma. Como resultado, eu passei muitos anos pensando se eu era o único cara que se sentia assim, ou se todos os caras se sentiam e ninguém queria falar a respeito. Mas acontece que, assim como a preferência sexual, a identidade de gênero também é um espectro.
Aqui temos uma conexão erótica que foi feita com [o desejo de se] ter um corpo feminino. Isso é sugestivo de “autoginefilia anatômica”, a excitação com a ideia, com o pensamento de se ter um corpo feminino convencional.
3. EU SEMPRE AMEI BIQUÍNIS FEMININOS.
Ao longo da minha infância, eu tinha esse problema de que sempre que eu encontrava um biquíni feminino mais ou menos do meu tamanho, eu queria colocá-lo. E se o contexto permitia (como, por exemplo, se eu estivesse na casa de um amigo), eu frequentemente o fazia — apesar do medo e do pânico de que alguém me visse. Sempre que eu fazia isso, eu rapidamente me olhava no espelho [enquanto de biquíni] e basicamente arrancaria o biquíni antes que eu pudesse ser pego.
Fazer isso verdadeiramente parecia uma compulsão, uma necessidade. E, ainda assim, eu nunca me aprofundei no porquê, então o hábito se manteve algo de que eu tinha vergonha, e que eu não compreendia.
Eu também amava olhar para outras mulheres de biquíni; eu ficava perplexo com suas confiança e beleza. Mas isso era mais socialmente aceitável, apesar de eu saber que, lá no fundo, tinha outra coisa rolando. Eu recentemente admiti tudo isso para uma amiga que já tinha começado sua transição. Ela olhou fixamente nos meus olhos, e disse, “eu sei exatamente do que você está falando, meu bem”. Foi um alívio.
Isso é um exemplo de autoginefilia do tipo “fetichista transvéstico”. Note a franqueza sobre a qual a pessoa que escreveu fala sobre sua compulsão.
10. ENGRAVIDAR ERA ALGO QUE ME ATRAÍA.
Quando eu era mais jovem, eu às vezes colocava um travesseiro sob minha camiseta e fingia que eu estava grávido. Olhando para um espelho, eu tentava me posicionar de tal forma que não desse pra dizer que eu era só um menino que nunca daria à luz.
A cada vez que minha esposa engravidava, eu tinha inveja dela e de como seu corpo mudava ao longo de todo o processo. Havia tanta força vital irrompendo dela nas semanas finais de cada gravidez! Era um milagre que eu queria vivenciar em primeira mão. Depois que nosso primeiro filho nasceu, ela teve dificuldade de amamentar então eu rapidamente assumi o desafio de me tornar seu conselheiro de lactação. Ela ficou surpresa pelo quanto eu queria ajudar a alimentar nossos bebês — e eu também — mas fazê-lo parecia muito natural pra mim.
Isso é um exemplo de “autofinegilia fisiológica” — performar funções corporais que são associadas ao ser mulher. A questão de lactação e gravidez parece ser um tema comum.
14. EU AMAVA FAZER COMPRAS, MODA, E CROSSDRESSING ESTAVA SE TORNANDO ALGO REGULAR (MESMO QUE EU NÃO CONSEGUISSE ADMITIR ISSO PRA MIM)
Por anos e anos, eu não conseguia admitir que eu era crossdresser, mesmo que eu estivesse fazendo isso com mais e mais frequência e que minha coleção de sapatos femininos estivesse ficando imensa.
Para mim, fazer compras e me vestir era uma atividade terapêutica, justificada para contrabalancear o estresse da minha vida como CEO de uma startup e pai de 3 criancinhas. Mesmo que fosse apenas temporário, eu conseguia escapar por um breve período de tempo.
Eventualmente, eu me acostumei tanto com essa racionalização que eu decidi que seria como eu explicaria a outras pessoas se eu fosse pego: eu faço isso para desestressar. Em retrospectiva, fica claro que eu estava apenas implorando pra mim mesmo para expressar quem eu realmente era.
15. EU TENHO UMA “TATUAGEM DE VADIA”.
[n/t: no original, usa-se a expressão “tramp stamp”, usada pra se referir àquelas tatuagens na lombar femininas típicas dos anos 90. “tramp” significa “vadia”, “imprestável”, e “stamp” significa literalmente “carimbo”.]
Autoexplicativo.
Bom, não é exatamente uma tramp stamp, mas é próximo o suficiente (no centro da minha lombar). Meus amigos e amigas costumavam me zoar por conta disso. Mas a imagem sempre significou muito pra mim e agora representa uma grande parte da minha jornada trans, o que, é claro, me deixa com muito orgulho.
Aqui são dois exemplos de “autoginefilia comportamental” — exibir comportamentos estereotipicamente femininos. O texto inteiro, na verdade, está repleto de exemplos de “autoginefilia comportamental”. Note o uso do termo (sexista) “tramp”.
Esse texto, é claro, está repleto de observações cheias de cobiça sobre os corpos de mulheres (“Eu tinha tanta inveja de meninas e mulheres que podiam sentar na frente de espelhos com o trabalho de fazer elas mesmas ficarem mais bonitas!” e “de vez em quando, eu vivenciava conflitos grandes com mulheres em posições de autoridade de poder profissional. Em retrospecto, eu agora entendo que eu apenas era ressentido pela capacidade delas de ser ambas femininas e ‘alfa’, mesmo que eu tenha internalizado minha inveja como aversão pura”) e é, em si mesmo, uma evidência da misoginia que a cultura trans reproduz. A feminilidade é retratada como um privilégio, algo do qual a pessoa que escreve tem inveja, quando, na realidade, é parte do sistema de gênero que o patriarcado usa para oprimir mulheres.
O “x” da questão é, portanto: esse artigo incrivelmente sincero e, em si, perspicaz, é visto como a jornada de alguém sobre “se tornar a pessoa que se realmente é” assim como tantos outros artigos e histórias parecidas são elogiados; a realidade é diferente. Aqui, vemos as sementes da autoginefilia semeadas bem cedo na vida por meio da fetichização aprendida de e da sensação de se ter direito a corpos de mulheres, catalisados pela pornografia, e, como podemos ver, esse comportamento persistiu ao longo de sua vida. Autoginefilia não “vai embora”. Ela é, como Lawrence já disse, uma orientação sexual.
Infelizmente, nosso clima político significa que mesmo os e as profissionais que tratam transgêneros ou transexuais do sexo masculino não podem sequer considerar a possibilidade de que a autoginefilia é algo real. Para ver o quão longe o lobby político transgênero vai para arruinar carreiras e até atacar as famílias desses/dessas profissionais encarregados/as de cuidar de transgêneros do sexo masculino, eu recomendo de coração ler esse artigo longo [em inglês], mas excelente, de Alice Dreger. Para uma compreensão sobre a vergonha e a raiva narcísica que impulsiona essas ações, que podem imediatamente ser relacionadas às ações de muitos dos transativistas de hoje, Lawrence, de novo, tem as respostas [em inglês].
Estamos em um mundo estranho, de fato, onde a existência de um vetor fundamental que direciona o comportamento das pessoas é ignorado ou categoricamente negado em prol de aninhá-lo no discurso confortável de “isso é quem você realmente é, você só está se tornando quem você é”. Como podemos ter políticas de cuidado de saúde honestas, como podemos dizer que estamos de fato falando da realidade do que faz transexuais autoginefílicos quem eles são, se continuarmos fingindo que isso não existe? De que forma isso está ajudando transgêneros do sexo masculino, quando as pessoas encarregadas de cuidar deles são incapazes de nomear o problema, e, pelo contrário, são reduzidas a meras pontes para tratamentos médicos invasivos? Sem reconhecer que a autoginefilia é específica a indivíduos do sexo masculino, o que isso nos diz sobre a forma como o tratamento está sendo dirigido a indivíduos transgêneros do sexo feminino? Para além dos efeitos sobre o indivíduo, também temos que considerar o efeito em larga escala. Associar alguns dos estereótipos mais prejudiciais e sexistas sobre o que mulheres podem ou não podem ser ao que significa ser mulher garante, nos níveis institucionais mais altos, as desigualdades estruturais que mantêm mulheres oprimidas.
Ser alguém cuja visão política foi formada no início dos anos 80, quando uma consciência aguda do sexismo, do racismo e da homofobia que estão estruturalmente arraigados na sociedade — até apoiados por um governo (que decretou a Seção 28 e acusou Nelson Mandela de ser um “terrorista”) — e quando muito dessas opressões de sufixo “-ismo” estavam sendo desafiadas e até ridicularizadas por meio da (contra)cultura popular, parece irônico que o “-ismo” estrutural mais violento, o do sexismo, parece passar despercebido. Confundir comportamentos estereotipicamente femininos com “o que significa ser uma mulher” é profundamente sexista e biologicamente essencialista; personalidade não determina sexo, sexo não determina personalidade.
O ano é 2016 [agora, 2021] e as políticas liberais do gênero são fundamentais sobre uma fé que demanda uma submissão institucional e pessoal incondicional a uma ignorância deliberada da realidade, sob pena de ataque, ameaças a carreiras e denúncias públicas. Agora, onde mesmo já ouvimos tudo isso?